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2004/02/26

Entre-aspas: Árvore 

Exasperava-se à míngua de frutos. As abelhas, porém,
enamoravam-se pelo perfume das suas flores.

O vento da Noite

Mário Rui de Oliveira (1963)


2004/02/25

Filmes: A maldição da beleza 

Numa tarde da primavera de 1940, enquanto Mussolini declarava guerra à França e à Inglaterra, Renato recebia a sua primeira bicicleta. Uma bicicleta era a maior liberdade que podia ter com os seus doze anos (e meio) e foi ela que o levou para longe das celebrações inconscientes dos seus vizinhos que enchiam as ruas e praças da pequena aldeia siciliana onde vivia. Mas não é nem pela bicicleta nem pela guerra que Renato recorda esse dia. Ele recorda-o porque foi nessa mesma tarde que viu pela primeira vez Malèna e se apaixonou.

Com 27 anos, viúva, Malèna percorre a aldeia todos os dias. A sua beleza extraordinária é, ao mesmo tempo, uma benção e uma maldição, atraindo o desejo primário dos homens da aldeia e concentrando a inveja e as intrigas das mulheres. E é através dos olhos de Renato que conhecemos a vida de Malèna e que a acompanhamos, é através dos seus olhos que sentimos a intolerância e a violência extrema que a inveja pode invocar. Mas foram as mãos de Giuseppe Tornatore que realizaram este filme ímpar, conduzindo-nos entre as imagens e as sensações, ao som da música notável de Ennio Morricone e com as interpretações únicas de Monica Bellucci e Giuseppe Sulfaro. Mas outra coisa não seria de esperar de um realizador que já nos deu o Cinema Paraíso e o 1900... A não perder, em DVD.

2004/02/23

Momentos: ...de fidelidade 

Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como só a presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?

Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.

Jorge de Sena (1919 - 1978)

2004/02/21

Música: Inspiração africana... 

Foi já há algum tempo que descobri a música africana, mas não sabia que existia uma guitarra nas mãos de um homem, [que por sinal acompanha a banda de Cesária (!)] que simplesmente nos faz viajar num som de tranquilidade e bem-estar. BAU é assim. Colocamos o CD e conseguimos estar em vários cenários ao ritmo desta guitarra. Conversar, ler, partilhar com a sensação de estar rodeados de um som que sempre ali esteve... podemos escutar repetidas horas, sempre envoltos no som mágico que se reflecte no nosso estado de espírito. Inspirem-se.

"Inspiração" é igual a BAU.

2004/02/17

Lugares: Desenhar hoteis... 

Farol Design HotelDesenhar um espaço. Criar ambientes. Redefinir cores. Há lugares que vale a pena visitar, por uma noite... ou mais. O efeito que um ambiente provoca em nós pode contribuir para um momento perfeito. Estes hoteis representam a imaginação de quem os pôde pensar. Goste-se ou nem por isso. Há quem lhes chame "frios", "straight" e, claro, "de design". Erradamente associados a "sem alma". Eu considero-os um exercício de simplicidade e de harmonia, onde a tranquilidade é o ponto de partida. Ou de partilha...

Design Hotels

2004/02/16

Momentos: Maternais 

No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
(...)

Fonte, II - Herberto Helder

2004/02/15

Livros: O outro lado da barbárie 

Há 900 anos, Portugal ainda não existia e a Europa atravessava lentamente o milénio turbulento que se seguiu à queda do Império Romano do Ocidente. Em Constantinopla, a fabulosa Bizâncio, a cultura clássica ainda sobrevivia, lado a lado com vários pequenos estados árabes cuja cultura florescia a uma altura impensável para os rudes ocidentais.

Foi precisamente nessa altura que os movimentos de poder no centro da Europa desencadearam um movimento de vagas sucessivas de invasões para "libertar" a Terra Santa dos infiéis, as famosas Cruzadas. E todos os participantes em tal empresa estavam absolvidos dos seus pecados, por isso a tudo se permitiram. Desde massacres completos, sem poupar ninguém, até à própria invasão de Bizâncio (que com eles partilhava a fé cristã!) tudo foi permitido. Mas nem isso desfez a imagem mítica que ficou das heroicas cruzadas, uma aventura romântica de conquista e glória.

No início dos anos 1980, Amin Maalouf propôs outra perspectiva. As Cruzadas vistas pelos Árabes mostram o outro lado da barbárie, o lado daqueles que viram as suas terras invadidas e a sua civilização ameaçada. Baseado em testemunhos de historiadores e cronistas árabes da época, este é um livro fascinante que nos leva numa viagem a um tempo remoto mas que ainda determina muito do que hoje se passa no Médio Oriente. E como é diferente a imagem do outro lado do espelho...

2004/02/14

Entre-aspas: O poder invisível 

«Tradicionalmente, o poder era o que era visto, o que era mostrado e o que se manifestava. Paradoxalmente, o poder encontrava o princípio da sua força no movimento através do qual exercia essa mesma força. Aqueles sobre quem o poder era exercido podiam permanecer na sombra, recebendo luz apenas da porção de poder que lhes era concedida ou do reflexo do poder que por instantes recebiam. O poder disciplinar, pelo contrário, é exercido através da sua invisibilidade, ao mesmo tempo que impõe àqueles que a ele estão sujeitos uma visibilidade compulsória. Na disciplina, são os sujeitos que têm de ser vistos. É a sua visibilidade que assegura o domínio do poder que é exercido sobre eles. É o facto de serem constantemente vistos, de poderem estar sempre a ser vistos, que mantém os indivíduos disciplinados na sua sujeição.»

In "Discipline and Punish", Michel Foucault

2004/02/13

Momentos: de se poder sentir... 

«E por isso tens razão quando dizes que já fomos um único ser, e não tenho nenhum medo disso, pelo contrário, é a minha única felicidade e o meu único orgulho e não o restrinjo de modo nenhum ao bosque.»

In "Três cartas a Milena Jesenská" , Franz Kafka

2004/02/12

Livros: Quem não tem dragões...? 

As metáforas transportam-nos em viagem... e há livros, que por serem para crianças poderiam ser em primeiro lugar para os adultos. O nosso imaginário está (por vezes) de tal forma empobrecido que nos esquecemos de olhar à nossa volta e sentir que afinal estamos todos por aqui...

Este fascinante livrinho explica às crianças que os nossos medos também são os medos de tantos outros que nos rodeiam e, por isso mesmo, podemos vivê-los com naturalidade e até (imaginem) falar deles e cumprimentá-los sempre que aparecem. Podemos baptizá-los, criar uma relação com os nossos Dragões... Escolher um, olhar bem para ele e desenhá-lo num papel...

«Antiga Sabedoria Dragoriana: No teu caminho pelo mundo, mantém os olhos bem abertos. Os Dragões são de todas as formas e feitios. Não são todos iguais. Nem todos PARECEM Dragões. Nem todos querem fazer-nos mal. Honra os Dragões que conheceres e aprende com eles. Não são tão poderosos como imaginas. Nenhum Dragão é mais forte do que tu.»

Por mim, já o li e reli... Foi-me oferecido. Por um adulto.

"Vamos falar de Dragões" - Katrhryn Cave & Nick Maland, Livros Horizonte

Entre-aspas: São Valentim? 

«Durante semanas, aguardei esperançoso o nosso primeiro dia de São Valentim juntos, e praticamente não conseguia pensar em mais nada. Quando, finalmente, chegou o dia especial, disse-me que tinha andado a pensar muito, e decidira que seria melhor para ambos seguir cada um o seu caminho. Partiu-se-me o coração, mas não podia deixar de lhe entregar as prendas que tanto tempo levara a preparar: rosas vermelhas, champanhe, perfume, chocolates suíços, cinco anéis de ouro e um schnauzer decorado com uma grande fita vermelha. É que estava mortinho por ver a delicada face dela iluminar-se de alegria.»

In A Namorada Portuguesa e outras 100 Histórias, Dan Rhodes, Gótica, 2004.

2004/02/09

Livros: Em busca da memória 

Na página três de um jornal com quase cinquenta anos de idade, Patrick Modiano encontrou um anúncio que o fez parar. O Sr. e a Sr.ª Bruder procuravam a sua filha Dora, então com 15 anos de idade, um metro e cinquenta e cinco centímetros de altura e rosto oval. Vestia um casaco desportivo, uma camisola em tom bordeaux, a saia e o chapéu eram azul-marinho e calçava sapatos castanhos. Este anúncio tinha sido colocado na edição de 31 de Dezembro de 1941 do Paris-Soir.

Depois de ler este apelo desesperado, embora perdido no passado, Modiano partiu em busca de Dora Bruder durante oito anos. Uma pequena pista aqui, uma referência ali. Um local onde os passos de ambos se poderiam ter cruzado se o tempo não os separasse... E foi assim que o escritor procurou desenterrar a memória de uma jovem júdia, presa nas malhas da ocupação nazi e cujo destino a acabaria por levar aos campos da morte de Auschwitz.

O que este livro procura é quase uma salvação póstuma, uma recuperação de uma indentidade através da restauração da memória dessa identidade. É, ao mesmo tempo, fascinante e doloroso percorrer as escassas 124 páginas que nos separam da resposta à pergunta que se forma no início do livro. Uma pergunta que não admite paragens. Uma pergunta que exige respostas ao leitor tal como as exigiu antes ao escritor. Quem foi Dora Bruder?

2004/02/08

Momentos: para lembrar. 

Lembra-te que
todos os momentos que nos coroaram
todas as estradas radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos

In "Pena Capital", Mário Cesariny

2004/02/07

Entre-aspas: Mulheres deste mundo... 

«O velho Samir, homem de muitas sabedorias, explicou-me um dia, sem maldade que, "naturalmente, um rosto de mulher não foi feito para ser contemplado à vista desarmada. Isso é uma alarvidade. Rosto de mulher é feito para ser tocado". O toque das macuas vê-se - nem é preciso tocar. Enquanto trazem o m'siro são o seu clown, a sua infância, a sua fúria - talvez seja impossível encontrar um rosto leve na moldura de m'siro, porque a pasta isola o seu rosto num sítio que já não é humano. (...) Uma mulher com m'siro no rosto escolhe sair à rua carregando o fantasma de si própria. Mas com a consciência de que o dia é para passear o esconderijo e não para fingir aquilo que não se é. Nós, mulheres ocidentais, fazemos o contrário: quem dera que o fantasma que aplicamos cada manhã sobre o rosto fosse tão credível que os outros esquecessem que por baixo há outro rosto, fugindo de si, sonhando com um elixir salvador.»

In "Crónica de Faíza Hayat", Revista "XIS", Jornal Público de 31 de Janeiro de 2004

2004/02/06

Filmes: Não há tradução possível 

Lembro-me de ter lido, algures no site oficial do filme Lost in Translation - O Amor é um Lugar Estranho, que às vezes precisamos de dar meia volta mundo para desenharmos um círculo completo e nos encontrarmos a nós próprios. Foi com essa sensação que fiquei depois de ver este filme, o segundo de Sofia Coppola.

História parece linear. Uma estrela de cinema de meia idade, já em decadência, vai a Tóquio para filmar um anúncio a uma marca de whisky. Confrontado com o vazio de si próprio que a cidade lhe parece devolver, deambula mecanicamente entre o bar e a piscina do hotel de luxo onde está alojado. É nesse percurso que uma noite conhece Charlotte, uma mulher jovem abandonada na solidão da cidade pelo marido, um fotógrafo viciado no trabalho. Como nenhum dos dois consegue dormir, partem juntos à descoberta de uma cidade estranha que acaba por os reconduzir à descoberta de si próprios.

Lost in Translation é um exercício de simplicidade. Sofia Coppola filma de forma despretenciosa. Paradoxal, consegue ser ao mesmo tempo serena e sufocante. Os actores principais, Bill Murray e Scarlett Johansson, estão simplesmente perfeitos. E Tóquio revela-se, entre o barulho insuportável e o silêncio ensurdecedor. Um dos melhores filmes do ano.

2004/02/04

Momentos: de Inconstância... 

Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também... nem eu sei quando...

"Inconstância" Florbela Espanca

2004/02/02

Música: O perfeito sentimento 

Quando entrei ontem na secção de música clásica da FNAC, achei que não iria encontrar nada que me seduzisse... Enganei-me. Passo a explicar: Sou um curioso da música clássica, nunca tive pressa em me tornar um especialista. Hoje sei que quando nos deixamos envolver é muito mais eficaz do que se nos disciplinarmos a tal. Encontrei dois volumes de Jacqueline du Pré (violoncelo), sob o título "A lasting inspiration", com etiqueta da EMI. É impressionante como se consegue a partir de música escrita, teoricamente fechada, já ouvida e tocada "n" vezes, e provocar lágrimas nos outros. Foi assim ao ouvir este CD.

Instruções de como ouvir: Muito alto, sem interrupções. Para os que se deixam levar na totalidade, um lenço pode ajudar. Para os que têm prazer no fumo, levem um cinzeiro. É enorme a associação do sentimento com a técnica desta senhora. A par com o jazz, a música clássica é um universo imenso de sentimentos e cores. Atrevo-me a dizer que, neste caso, as cores são as de Outono e o sentimento é o que se quiser, desde que seja forte.

2004/02/01

Filmes: A vida... e o resto. 

Quando pensamos em ver um filme de Woody Allen, sabemos à partida que algo de emocional nos será presenteado. O curioso deste último é a actualidade da perspectiva das emoções. Eu explico: a necessidade que hoje temos que gostem de nós; que façamos parte de um TODO que nos é "como que imposto" pela sociedade; a não autonomia de opção e decisão... enfim, o profundo comportamento de decisão individual, na sua maioria, dependente e sujeito sempre aos olhos dos outros... A "isto " Woody chama desenvolvimento pessoal. Eu cá, chamo maturidade do nosso "Self". Ninguém disse que era fácil, mas não paremos de tentar de nos libertarmos desse padrão. De forma simples. «Como tudo o resto...»

Para ver e transportar para cada um de nós e da nossa própria vida...

Filmes: Coisas de poder 

Estará ainda algum filme por fazer sobre o poder? E não estou a falar do poder como uma coisa que se pode ter e usar. Também não estou a falar do poder como estatuto ou influência. Estou, isso sim, a referir-me ao poder que se vive e sente, ao poder que se constroi e destroi num olhar. Estou a falar do poder que define e regula as relações entre as pessoas. Entre todas as pessoas.

Jean-Claude Brisseau ousou achar que sim, que ainda havia um filme por fazer sobre o poder. Talvez por isso, ousou escrever e filmar Coisas Secretas, convidando-nos a ousar olhar para o poder de forma diferente. O poder da sedução e do desejo. O poder da manipulação e da recusa das regras. O poder da ilusão da própria sensação de se ser poderoso... Um filme poderoso. Para quem consegue ver para além do poder.

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